Em busca de sentido

“O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.” Carl G. Jung

O sentido nos conecta à realidade, nos faz viver apesar do sofrimento, dá coerência ao que somos

diante da coletividade, leva luz às trevas e é alimento da alma.

BEIRA-MAR - Zé Ramalho



      Há muito me ocorreu de analisar a letra desta canção de Zé Ramalho. Já era evidente possuir muitos elementos simbólicos passíveis de compreensão, mas isso ficou bem mais patente na medida em que me detinha nos pormenores dos versos. Seu simbolismo não se esgota aqui, mas vai além, muito além, como sinto que ocorre quando me ponho a ouvi-la.

Eu entendo a noite como um oceano
Que banha de sombras o mundo de sol
      A noite e o oceano guardam estreitas conexões, sobretudo se limpos dos artefatos tecnológicos: o desconhecido, o medo, a intensidade, a dúvida, a imensidão, a solidão, etc. O mundo de sol é o conhecido, que se vê no dia a dia, familiar, nítido, seguro, povoado... A noite tende a ser mais fria que o dia, mais úmida (o orvalho), e, como um líquido, como um oceano, ela banha de sombras, de escuridão, o mundo conhecido, a consciência, deixando a sonolência, iniciando outra fase da vida. A atividade dá lugar ao repouso e tudo descansa. 

A aurora que luta por um arrebol 
De cores vibrantes e ar soberano
      Na aurora ocorre o oposto: a luta se inicia novamente e o repouso cede à ação. Para dormir não pode haver luta, ou ocorre a insônia. Mas para se agir é preciso lutar contra a preguiça, a inércia. A consciência requer esforço: o abandono, deixar de conduzir as próprias ações, é próprio ao inconsciente. A aurora, o despertar da consciência, equivale ao surgimento da luz e, por sua vez, do despontar das cores vívidas. Enquanto a noite cobre e banha, a luz se espalha, é excelsa, notável, magnífica, suprema. A escuridão se associa ao que está abaixo; a luz, à altura, como se fosse soberana sobre a noite.

Um olho que mira nunca o engano
Durante o instante que vou contemplar
      A aurora, a consciência, é como um olho saudável: percebe nitidamente o que ocorre ao redor sem falhas, erros ou ilusões. Mas para isso é necessário que haja uma intenção, uma direção do olhar no sentido de contemplar o que ocorre. Pois pode-se olhar sem ver e voltar-se sem mirar. 

Além, muito além onde quero chegar
Caindo a noite me lanço no mundo
Além do limite do vale profundo
Que sempre começa na beira do mar
É na beira do mar
      A consciência em termos de atenção dirigida a um fim, de vontade, só pode ir aonde quer chegar. Para ir além, a consciência tem que ceder e deixar a atenção livre para perceber o que ocorre, aceitando o que vier. Então a “noite desce”, o inconsciente se apresenta, e “eu me lanço no mundo”. É um estado equivalente ao hipnagógico (entorpecimento que antecede o sono) no sentido de que ocorrem imagens sem controle consciente. 
      Mas qual é o “limite do vale profundo”? “Vale” é uma “depressão alongada situada no sopé de um monte ou entre elevações topográficas como colinas, montanhas” ou “terreno baixo e mais ou menos plano, à margem de um rio ou ribeirão; várzea” (HOUAISS, 2009). Como esta estrofe fala da beira do mar, esse vale pode se referir ao terreno mais ou menos plano que margeia o mar, entre este e uma serra, por exemplo. “Além do limite do vale profundo” parece indicar a praia, pois esta “sempre começa na beira do mar”. A praia também é chamada “beira-mar” (HOUAISS, 2009), que é o título da música. E com “vale profundo” o cantor provavelmente quer expressar mais uma representação da terra enquanto oposta ao mar, a qual vai se encontrar com este na praia. Porém, o autor parece falar de tudo, menos da praia concreta. Ao longo da letra da canção ele descreve uma série de imagens e as associa entre si indicando algo que está além do que é expresso. Faz uso, portanto, de símbolos (JUNG, 2001).
      Na beira do mar ocorre o encontro deste com a terra. Devido às alusões anteriores a opostos (mundo de sol/noite-oceano, aurora/noite, olho/engano, vale profundo/mar), há uma nítida sugestão de que, pelo menos no contexto desta canção, o par terra/mar também constitui opostos. Coisas curiosas ocorrem nessa região onde o mar toca a terra.

Ói, por dentro das águas há quadros e sonhos
E coisas que sonham o mundo dos vivos
      Neste trecho o autor descreve os elementos encontrados no inconsciente: quadros – cenas, panoramas, representações – e sonhos, estes que são produtos do inconsciente, bastante familiares. O segundo verso desta passagem é bastante curioso: “coisas que sonham o mundo dos vivos”. Na literatura junguiana pode-se encontrar duas referências a essa situação. Jung (1991b) alude a um sonho com um iogue em posição de lótus que sonha sua vida na terra. “Olhando-o de mais perto, vi que ele tinha o meu rosto; fiquei estupefato e acordei, pensando: ‘Ah! Eis aquele que me medita. Ele sonha e esse sonho sou eu.” Eu sabia que quando ele despertasse eu não existiria mais’” (JUNG, 1991b). Do ponto de vista do indivíduo o ego sonha com o inconsciente. Da perspectiva do Si-mesmo, porém, este é que sonha a vida do indivíduo. 
      Mindell (1989) também indica que os sintomas corporais e as doenças são como “sonhos do corpo”, e relata diversos casos onde, amplificando os sintomas, os indivíduos tiveram insights sobre o seu significado, com sua decorrente dissolução. 

Há peixes milagrosos, insetos nocivos
Paisagens abertas, desertos medonhos
      De novo, sugestões de pares de opostos: peixes milagrosos, assim como todos os artigos milagrosos conhecidos, devem produzir curas ou resolver situações problemáticas de forma maravilhosa. Insetos nocivos fazem algo bem diverso. Desertos terríveis e extremamente desagradáveis são como uma prisão para aqueles que se atrevem a atravessá-los, pois correm risco de se perder e de ser mortos, ao contrário de “paisagens abertas”. As portas estão “abertas” quando as situações ocorrem de acordo com as expectativas do indivíduo, pois então existe uma saída, um acesso claro a uma situação benéfica, uma “abertura”.

Léguas cansativas, caminhos tristonhos
Que fazem o homem se desenganar
      Neste ponto o autor alude apenas aos aspectos negativos e indesejáveis, que geralmente são reprimidos pelas pessoas. “Léguas cansativas” e “caminhos tristonhos” lembram as incontáveis vezes em que, devido ao hábito em funcionar sempre de certa maneira, em adotar uma tendência a ter continuamente o mesmo ponto de vista, a vida se torna uma rotina e o tédio se instala. Tédio é o estado interior onde o processo psíquico se repete – as coisas não mudam dentro do indivíduo. Para todos os problemas, todos os relacionamentos, seja no trabalho ou no lar, a resposta é sempre a mesma, não se pensa ou se sente de outro jeito. Quando há um dinamismo interior, quando os opostos são conscientizados, não pode haver rotina, pois a psique se comporta como um rio cuja água se desloca de um ponto mais alto para um local mais baixo. O tédio é como as águas paradas de um pântano ou de um lago sem fluxo: não há movimento, não há esperança de vida, só desengano. 

Há peixes que lutam para se salvar
Daqueles que caçam em mar revoltoso
      Os peixes se opõem àqueles “que caçam em mar revoltoso”, lutando para se salvar. Essa passagem fica estranha se entendida de modo literal, pois não é preciso que os peixes se esforcem para se salvar em mar revolto, pois é quase impossível se pescar com o mar nessa situação. Caçar ou pescar em mar revolto indica aquelas situações insustentáveis em que o indivíduo “nada contra a correnteza”, isto é, não se adapta à realidade. É o mesmo dinamismo do tédio indicado nos versos analisados logo acima. O inconsciente (peixes) se opõe a essa situação enquanto conteúdo da vitalidade da psique como um todo. Seu papel em todo caso é equilibrar a psique através do princípio da compensação (JUNG, 1991a). Esse é um aspecto positivo do inconsciente. 

E outros que devoram com gênio assombroso
As vidas que caem na beira do mar
É na beira do mar
      O aspecto negativo ocorre quando os complexos inconscientes interferem na consciência “devorando” o que o ego quer lembrar no momento de uma conversa (um nome ou uma palavra qualquer), absorvendo a exatidão de uma ação que o indivíduo já está habituado a fazer, o que provoca acidentes, tragando a energia psíquica disponível do ego, o que o faz ficar indisposto para as tarefas diárias, etc. Os complexos atuam como ladrões do que o ego possui: tomam o que este tem de mais precioso e levam para o inconsciente. São como filhos ciumentos que querem impor seu direito de existir à consciência, que insiste em repeli-los. E isso ocorre no limiar da consciência com o inconsciente. “É na beira do mar”. Nesta região ocorrem as trocas de uma dimensão psíquica para a outra, pois constitui o seu encontro. Esses versos sugerem que a morte simbólica do autor ocorre neste momento.

E até que a morte eu sinta chegando
Prossigo cantando, beijando o espaço
      A morte representa o fim do que é conhecido, do que é agarrado e adotado como pertencente ao indivíduo. O término da antiga maneira de ser e de viver está iminente, mas ainda não chegou. O indivíduo pode vivenciar verdadeiros acessos de pânico com medo da morte física. Mas esta é apenas um símbolo para a morte psíquica do velho conhecido ego. O indivíduo pode, enquanto a transformação não ocorre, prosseguir interagindo com o inconsciente de modo a manter o fluxo. 
      Acontece muitas vezes das pessoas acordarem com uma canção que insiste em cantarolar internamente. Passa-se a outras atividades, mas basta voltar brevemente a atenção para os conteúdos internos para se constatar que a canção ainda se encontra lá dentro. E muitas vezes a letra é estrangeira. Vale a pena analisar o seu significado – qual sua ligação com a vida, qual fato importante ocorreu quando foi ouvida, o que a música quer mostrar que se insiste em não conhecer. E após esse trabalho interior, é válido cantá-la espontaneamente, como a dizer ao inconsciente que a mensagem foi recebida e entendida. O inconsciente envia e a consciência responde – a dinâmica se estabelece. A pessoa se sente mais espontânea, mais solta e livre. Essa prática é uma das formas de se executar a imaginação ativa, uma técnica reformulada por Jung (1991a), que objetiva criar um intercâmbio entre a consciência e o inconsciente.
      Neste momento Zé Ramalho parece atuar como um louco, “beijando o espaço”. Entretanto, quando os conteúdos inconscientes afloram à consciência trazem renovação, novos conteúdos, novas maneiras de agir, de pensar, de perceber, de sentir. Como o indivíduo não está habituado a isso, como esses novos conteúdos não fazem parte do que ele conhece de si, pode pensar que esteja ficando louco (ROSSI, 1982). E as pessoas conhecidas ao redor, que o veem agir como se não fosse ele, podem pensar o mesmo. Porém, se o indivíduo consegue integrar esses conteúdos de forma voluntária à vida, os efeitos negativos do inconsciente podem ser minimizados. Na verdade o autor não beija o espaço: ele beija uma imagem que vê projetada no espaço. E essa imagem é percebida como real, como existente em sua vida, o que não ocorria antes. Interagindo com essas imagens, praticando a imaginação ativa, a morte chegará, e o autor sentirá sua presença.

Além do cabelo que desembaraço
Invoco as águas a vir inundando
Pessoas e coisas que vão se arrastando
Do meu pensamento já podem lavar
      Os cabelos se ligam à cabeça, sede da razão e dos pensamentos. Basta atentar à equivalência da expressão “perder a cabeça” com a loucura. Se os cabelos se originam da cabeça, eles parecem representar o seu produto: as ideias. Para Harnisch (1999), eles também se associam à liberdade quando longos. Se brancos, indicam sabedoria. Desembaraçar é desinibir, soltar, desvencilhar, desatar o nó, ordenar, compreender, atinar, orientar. O que estava confuso fica claro. 
      Além de fazer isso, o cantor invoca as águas (o inconsciente) a inundar (a consciência) pessoas e coisas que são lavadas e se arrastam de seu pensamento. Neste ponto o autor parece referir à ligação anterior que existia entre seus conteúdos interiores e as pessoas e coisas externas. Havia, aparentemente, uma confusão que foi clareada e então foi separado o que pertencia a ele do que não o era. Psicologicamente isso se chama projeção, uma suposição percebida como certa de que determinada qualidade se refere ao outro, quando também pertence ao sujeito que projeta, muitas vezes com mais intensidade, e que não é reconhecida devido à repressão. As projeções apresentam-se sendo lavadas e arrastadas para longe da consciência, do ego. Isso ocorre como efeito do autoconhecimento, a compreensão de que as formações internas desagradáveis e repelidas para o inconsciente, não estão fora, mas dentro. 

Ah! no peixe de asas eu quero voar
Sair do oceano de tez poluída
      Peixe de asas é uma figura fantástica, principalmente quando pode ser cavalgado. Sua composição envolve opostos: acima (asas) e abaixo (peixe). Zé Ramalho sugere ser sustentado sobre opostos. De significado semelhante é a crucificação, pois os opostos – a vertical e a horizontal – se constituem em instrumento de tortura de um humano/divino. Algo semelhante ocorre quando conteúdos inconscientes são conscientizados. O indivíduo se percebe como portador de sentimentos, percepções e pensamentos antagônicos, o que é muito doloroso, torturante mesmo, daí a imagem da crucificação. Para o leigo de si é impossível sentir ao mesmo tempo amor e ódio por alguém, mas isso não é novidade para pessoas mais conscientes da natureza total de suas personalidades (JUNG, 2001). 
      Porém, o cantor parece já ter passado por essa fase versos atrás, com sua morte, e o que aqui ocorre é um reflexo da realização conseguida. O peixe voador o leva para transcender o oceano poluído no qual estava anteriormente imerso. Pois aquilo que é reprimido só aparentemente fica isolado do ego: na verdade o inconsciente acaba dominando a pessoa de um modo enganoso, ilusório. A pessoa dividida interiormente não percebe as situações com objetividade, mas como uma mistura de conteúdos internos projetados em suas impressões externas. O inconsciente – e a vida – acaba poluído. Mas o autor finalmente consegue transcender esse estado de coisas.

Cantar um galope fechando a ferida
Que só cicatriza na beira do mar
É na beira do mar
      Galope, neste caso, indica um “tipo de estrutura poética, com estrofes de seis versos de dez sílabas, utilizada em música folclórica” (HOUAISS, 2009). Existe, porém, um tipo específico de galope chamado “galope à beira-mar”, que envolve estrofes de 10 versos de 11 sílabas, e que finda com o verso “cantando galope na beira do mar” ou variações dele, mas que termina sempre com “mar” (WIKIPEDIA, 2011). Para o autor, cantar esse poema fecha uma ferida que só cicatriza na junção, no encontro, do inconsciente com a consciência. Pois é nessa região que o ser humano pode se sentir como um ser total, indiviso, coeso, íntegro. A ferida é o vazio que se sente e a consequente busca, e as decorrentes desilusões, para preenchê-lo. As pessoas normalmente erram insistentemente em achar o que pode satisfazê-las, pois olham sempre para fora. Entretanto, a ferida só cicatriza na beira do mar. E esse processo é chamado por Jung (2001) de individuação – in/dividu/ação – tornar não dividido. 

      Muito mais poderia ser dito sobre esta canção. Há uma simbologia alquímica muito rica que pode ser explorada também. Mas a intenção não é esgotar ou aprofundar demasiadamente as possibilidades de interpretação, o que poderia levar a uma verdadeira monografia a respeito.
      Beira-mar é a vida que acontece entre dois extremos: a terra e o mar, o conhecido e o desconhecido, o que veio e o que irá, o dia e a noite, o claro e o escuro... Entretanto, saímos da beira do mar e adentramos a terra, onde a secura predomina. E hoje, céticos de emoção, de sentimento, de aventura, de vida, se foge da morte para perder a vida.

(Leia mais a respeito: "Como integrar o seu dragão")


23 comentários:

Anônimo disse...

Interpretação digna de um Mestre da ALma !

Ana Luisa Testa disse...

Linda interpretação!

Maria Lúcia Sampaio disse...

Belíssima interpretação!Parabéns, Charles!

Charles A. Resende disse...

Obrigado, gente! Ficarei feliz se conseguir ser apenas um servidor da minha alma, materializando o que puder ser, o que conseguir ser.

Goretti Brandão disse...

Olá Charles! Adoro a maneira como você faz a interpretação dos temas escolhidos e, sobretudo, a forma como você escreve seus textos! Ia dar um excelente jornalista/articulista! Bravo!
Um forte abraço

Charles A. Resende disse...

Obrigado, Goretti! Eu me esforço no que gosto. Abração.

Yara Lima Oliveira disse...

Olá Charles! Qual o adjetivo para adaptar-se à sua análise dessa letra?
não encontro um que descreva como quero então digo: SENSACIONAL!
Fico encantada cada vez que passo aqui. Perco-me em caminhos já nddos e em mares nunca navegados. Parabéns. A amiga de sempre Yara Cilyn, que lhe chamava de.... lembra?
Dr. César era o Pescador, mas não consigo lembrar-me como chamava você no Mundo dos Sonhos.

Charles A. Resende disse...

Obrigado, Yara! Fico feliz por, ao que parece, estar conseguindo transmitir a profundidade de sentidos como a desta canção. Afinal, muitas vezes a cantamos e nem nos damos conta do que há por trás, embora tenhamos um pressentimento...
Sobre o nome, não era "Sonhador"? Acho que faz mais de 12 anos...
Abração.

Anônimo disse...

Muito doida essa interpretaçao,mas é assim mesmo que funciona a cabeça do zé!

Dona Morte disse...

Nossa! Sempre procurei análises das letras do Zé Ramalho, e sempre me identifiquei profundamente com esta música (agora sei por quê) e "Orquídea Negra". Seria possível uma análise desta última, também? Parabéns por esse belíssimo trabalho.

Gerente de Projetos, PMP disse...

Você é um psicologo de profetas...não sabia que tinha essa profissão, parabéns!

Anônimo disse...

Rapaz, meu entendimento é mais simples. O Zé simplesmente fala de pessoas e situações que ele encontra na noite. A música é uma comparação, por isso começa assim 'eu entendo a noite como um oceano que banha de sombras um mundo de sol'. Pelo menos é o que eu acho.

Unknown disse...

Me deparei agora com esta interpretação da música " Beira-mar" de Zé Ramalho. Publiquei um livro, a uns anos, que em breve será reeditado pela editora Madras " Zé Ramalho- O poeta dos abismos", uma biografia feita em parceria com o próprio Zé Ramalho. na terceira parte da obra, faço uma interpretação de diversas canções do Zé, e uma dela sé Beira -mar. partilho aqui a leitura que fiz de Beira -mar capitulo 2. Um abraço
BEIRA-MAR CAP. 2

Quando o dia morre e a noite avança/

a brisa marinha bafeja e murmura

Nos braços divinos da santa natura/

A noite soturna tristonha descansa

O mundo adormece, mar se balança/

A lua de prata começa a brilhar

Jogando reflexos dourados no ar/

Rasgando o véu preto que envolve o espaço

Matando a metade do grande mormaço/

Que agita as procelas na beira do mar

Em cima da terra o mar permanece/

Cheio de enigmas completo de enredos

Guardando mistérios e grandes segredos/

Ciências ocultas que o chão desconhece

É bravo gigante que nunca adormece/

Um minuto apenas não pode parar

A terra girando suspensa no ar/

Obriga que as águas se movam também

Sem obedecerem na terra a ninguém/

Somente a Netuno que é mestre do mar

No mundo da gente qualquer ser humano/

Que viva pisando no globo terrestre

É uma energia que para seu mestre/

É só contemplar este grande oceano

Aonde o poder de um ser soberano/

Está retratado sem nada faltar

Grandeza que o homem não pode imitar/

Nem mesmo em oitenta milhões de semanas

Aonde a ordem supera as humanas/

No céu e na terra e por dentro do mar

Como foi exposto mais acima, “Beira-mar cap.I” faz parte de uma
trilogia, extraída do livreto “Apocalypse”. A melodia de “Beira-mar
cap.I” transporta-nos a reinos distantes, onde habita o segredo e o sagrado. É uma oração de exaltação à natureza. O cantador atinge os píncaros de sua arte de interpretação, conduzindo-nos, através de sua voz, às dimensões internas que o inspiraram. Um dos grandes momentos
na obra artística de Zé Ramalho...

“Quando o dia morre e a noite avança/ a brisa marinha bafeja e murmura/
nos braços divinos da santa natura”. O poeta nos fala dos instantes em que
a claridade diurna da consciência arrefece, abrindo espaço para que
os conteúdos “noturnos”, as visões, as imagens interiores, as intuições
profundas, aflorem em níveis nos quais possam ser reconhecidas.
Enquanto nossa atenção se encontra voltada para o exterior, atuando
objetivamente, o que é uma característica solar, as realidades internas
não podem se manifestar. Quando ela inverte seu fluxo, a situação
se modifica... A brisa marinha representa o sopro inspirativo, a “voz
de Deus”, originária das camadas profundas, inconscientes, do nosso
psiquismo, que sussurra seus segredos, apoiada em processos ligados
à nossa própria natureza íntima, vista como “santa”, ou seja, pura
e imaculada.

Unknown disse...

a segunda parte:


“A noite soturna tristonha descansa/ O mundo adormece e o mar se balança/a
lua de prata começa a brilhar/ jogando reflexos dourados no ar/ rasgando o
véu preto que envolve o espaço/ matando a metade do grande mormaço/ que
agita as procelas na beira do mar”. No primeiro verso, o poeta nos fala
dos aspectos sombrios, “negativos”, de nossas dimensões interiores,
que se encontram em estado de repouso, não interferindo portanto
nas percepções que se desenrolam. O mundo é o território no qual
funcionamos cotidianamente, com seu “barulho” causado pelos
pensamentos triviais. Quando o “mundo adormece”, deixando de
exercer sua força e seu fascínio, a consciência inverte seu fluxo,
voltando-se para dentro de si-mesma, desvinculando-se das
demandas exteriores ligadas ao dia-a-dia, iniciando-se um processo
de registro dos movimentos interiores, das “ondas” que chegam das
camadas inconscientes. São as ondas visionárias do inconsciente
que começam a se movimentar, atingindo as praias, a fronteira
entre os dois mundos, o do conhecido e o do desconhecido. A lua é
também chamada de “mensageira do inconsciente” e está ligada aos
processos intuitivos. Ela é receptiva e passiva, não interpreta nem
racionaliza aquilo que reflete. Ela simboliza o princípio passivo, a
luz que se manifesta nas trevas noturnas, o sonho e o inconsciente.
Sua luz é indireta, refletindo a claridade solar, sendo portanto uma
intermediária “noturna” dos processos ligados à conscientização dos
conteúdos obscuros de nossa alma. É através de sua luz indireta que
se podem vislumbrar estes conteúdos. São os reflexos da consciência
superior, o sol. O “véu preto que envolve o espaço” é uma imagem de
tudo aquilo que nos impede de ver as coisas como elas são: nossos
condicionamentos, os medos, os temores todos, as percepções
equivocadas, os elementos que nos limitam e aprisionam. Através
da luz refletida pela lua, pode-se perceber estes elementos, rasgando
assim o véu da ignorância. Nos últimos versos desta estrofe, o poeta
se refere à destruição da “metade do grande mormaço/ que agita
as procelas na beira do mar”. O mormaço parece representar um
estado de desconforto psicológico, abafamento, opressão. É uma
combinação de calor e umidade, fogo e água, razão e emoção. É
este mormaço que “agita as procelas na beira do mar”. As procelas são
tempestades marítimas e, em sentido figurado, representam um
estado de grande agitação. Esta agitação é causada pelo estado de
opressão psicológica, ao qual todos somos submetidos enquanto não
reconciliarmos as diferentes facetas de nosso ser. Podemos associar
este estado ao conflito básico entre a razão e a emoção, a mente e o
coração. A beira do mar é a fronteira, o limiar entre os dois mundos,
o mundo das nossas percepções ordinárias e o reino do mistério,
do segredo, o universo desconhecido das nossas percepções supraconscientes.
Quando a luz penetra a consciência, após atravessar
esta fronteira, metade deste “grande mormaço” é morto, se desfaz.
O conflito cessa, permanecendo apenas o dinamismo inerente à
relação entre aspectos complementares.

Unknown disse...

terceira parte:
“Em cima da terra o mar
permanece/ cheio de enigmas completo de enredos/ guardando mistérios e grandes
segredos/ ciências ocultas que o chão desconhece/ é bravo gigante que nunca
adormece/ um minuto apenas não pode parar/ a terra girando suspensa no ar/
obriga que as águas se movam também/ sem obedecerem na terra a ninguém /
somente a Netuno que é mestre do mar”. Nestes versos, o poeta descreve
a natureza das “águas” interiores. A terra representa nosso mundo
cotidiano, o reino das percepções comuns, das ocupações diárias,
enfim, o conhecido. O mar se situa “em cima da terra”; isto quer dizer
que ele a ultrapassa, não se encontrando por ela limitado. Nossas
dimensões interiores são infinitamente mais abrangentes e vastas
do que o universo dos sentidos e percepções ordinárias. A mente
humana comporta, em sua vastidão, aspectos por nós desconhecidos.
Sua natureza íntima é plena de segredos e mistérios. A maior parte
de seus potenciais permanece latente, inconsciente, esperando ser
desvelada. São as “ciências ocultas que o chão desconhece”, sendo
que aqui, o chão representa a base sobre a qual assentamos nossa
vida, quer dizer, o plano físico. As profundezas inconscientes- ou
melhor, supraconscientes- estão em constante movimento, em um
processo de intercâmbio continuo com as camadas superficiais
da consciência, influenciando-as e sendo por elas influenciadas. A
imagem contida no verso “a terra girando suspensa no ar/ obriga
que as águas se movam também” nos dá a idéia da inexorabilidade
deste movimento, que obedece a leis superiores ainda desconhecidas.
A terra, representando nossa vida, em constante mudança e
transformação- muitas vezes à revelia de nossos próprios desejos-
segue uma espécie de rota, uma órbita pouco compreendida pelos
níveis superficiais da consciência, visando determinados objetivos,
em um processo que nada tem de estático ou pré-fixado, mas que
comporta infinitas probabilidades e possibilidades. Este movimento
“exterior” atua invariavelmente sobre os níveis “interiores”, já que na
verdade, não existe nenhuma fronteira absoluta entre estes níveis,
que correspondem a diferentes aspectos de uma mesma realidade. Só
que o movimento das “águas” não é determinado por forças externas,
mas obedece a leis próprias à sua natureza. Estas leis são oriundas de
uma inteligência transcendente, representada por Netuno, o “Mestre
do mar”, a divindade regente das profundezas abissais. “No mundo da
gente qualquer ser humano/ que viva pisando no globo terrestre / é uma energia
que para seu mestre/ é só contemplar este grande oceano/ aonde o poder de um
ser soberano/ está retratado sem nada faltar/ grandeza que o homem não pode
imitar / nem mesmo em oitenta milhões de semanas/ aonde a ordem supera as
humanas/ no céu e na terra e por dentro do mar”. A pessoa que se encontra
todo o tempo “pisando no globo terrestre”, quer dizer, que não dá
espaço para o vôo, para o mergulho dentro de si-mesma, para a
imaginação, a ousadia, a criatividade, a pessoa que não se indaga a
respeito da imensidão do universo, é uma pessoa que impede o fluxo
da sua própria energia interior, paralisando a ação de seu “mestre”, a
sabedoria inerente a nosso ser, o Self. A contemplação da criação, no
caso representada pelo “grande oceano”, nos faz vislumbrar o poder e
a suprema ordem imanentes à Grande Inteligência que a tudo criou.
A natureza, em sues múltiplas manifestações, reflete com perfeição
o plano do Criador para todos aqueles que têm “olhos para ver”. Por
mais engenhosa que seja a capacidade e tecnicidade humana, jamais
poderemos imitar a natureza, com sua beleza, sabedoria e ordem
absoluta. É uma ordem que tudo penetra, englobando as múltiplas
realidades- representadas pelo céu, pela terra e o mar- e unindo-as
em um sistema coordenado e coerente.

Elbert disse...

Essa análise me parece de uma pessoa que estava sob o efeito de alucinógenos mais potentes dos que o próprio Zé Ramalho fazia uso.
Nessa letra o Zé faz uma analogia brilhante entre a noite e o oceano. Só que há que se levar em conta que essa analogia é feita sobre a noite que ele vivia, ou seja, uma noite regada a drogas, medos e perigos. Ele vai descrevendo de uma maneira geral as suas noites que curam a depressão do dia, mas que deixam marcas profundas no espírito e no corpo e demonstra uma vontade de levar uma vida mais saudável enquanto ainda tem forças para lutar contra esses vícios e perigos(no peixe de asas eu quero voar, sair do oceano de tez poluída, secando a ferida que só cicatriza a beira do mar)

Unknown disse...

Olá Charles, parabéns pela descrição das imagens exaltadas na canção de Zé Ramalho! Este semestre comecei a cursar a disciplina de Psicologia na Arte, na faculdade de Artes Visuais. O seu texto é um ótimo exercício de psicanálise para deixar os interessados pelo assunto, como eu e tantos outros estudantes, atentos à interpretação dos fragmentos textuais que permeiam nossa órbita consciente/inconsciente.

Anônimo disse...

Adoro o Zé e essa música em particular. Já havia feito uma análise dela, más sob o ponto de vista da astrologia, inclusive, Junguiana! O Zé é uma alma profunda, aquática (por conter grande parte do seu mapa em signos e planetas do elemento)por isso tão sensível e adorador da noite, da escuridão e dos seus mistérios (sem dúvidas devido ao fato do seu ascendente em escorpião e um stellium na casa 12, que corresponde a casa de peixes). Na astrologia carmártica ele estaria no último estágio da sua evolução no atual ciclo ( cada casa da mandala astrológica representa uma fase. A casa 12 seria a última a ser completada).. Talvez por isso a sua sabedoria e espiritualidade infinitas!

Parabéns pelo blog!

Mariana Barreto

Anônimo disse...

Adoro o Zé e essa música em particular é uma das minhas favoritas dele. Da minha percepção ela é a que melhor traduz a sua essência. Já havia feito uma análise dela, más sob o ponto de vista da astrologia, inclusive,usando conceitos astrológicos do Psicologo e também astrólogo, Jung. O Zé é uma alma profunda,mística,predominantemente aquática (por conter grande parte do seu mapa em signos e planetas do elemento)por isso tão sensível e adorador da noite, da escuridão e dos seus mistérios (sem dúvidas devido ao fator ascendente em escorpião e um stellium na casa 12, que corresponde a casa de peixes). E pra fechar o panorama, o seu meio do céu em câncer (relação com o público, profissão que lida com muitas pessoas, de grande visibilidade) fechando a tríade aquática. Na astrologia carmártica ele estaria no último estágio da sua evolução no atual ciclo ( cada casa da mandala astrológica representa uma fase. A casa 12 seria a última a ser completada).. Talvez por isso a sua sabedoria e espiritualidade infinitas!

Parabéns pelo blog e viva o Zé!

Mariana Barreto

Ives Leocelso disse...

Gostei bastante do texto. Deu vontade de conhecer mais sobre os trabalhos de Jung. Parabéns!

Ademir disse...

Gente! Zé Ramalho ainda vive. Não seria melhor perguntar pra ele?

Unknown disse...

O meu namorado mim mandou essa música só que ele falou que eu só entenderiam ele se eu entendece a letra da musica. Mais eu NÃO sei oque ele quis dizer com isso

Anônimo disse...

É fácil interpretar. Difícil coçar em palavras. A letra fala da consciência se sobressair da inconsciência. É sobre evoluir.
Zé Ramalho é um gênio ou alguém sobrenatural. E ao analista da letra, meus cumprimentos pela sensibilidade e inteligência em colocar em palavras o sentido desta letra magnífica.